Pediatra fala sobre os principais pecados cometidos contra a infância, entre eles, terceirização da criação, superproteção, confinamento e medicalização das crianças
Os dados são alarmantes. O Brasil já é o segundo país do mundo que mais consome Ritalina, medicação tarja preta usada para controlar o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), que tem como principais usuários crianças e adolescentes.
Para o médico pediatra Daniel Becker, o quadro é sintomático das condições sociais à quais a infância está sujeita atualmente. Falta de convívio entre a família, crianças confinadas dentro de casa que precisam ser constantemente distraídas e pais que superprotegem e não conseguem dizer “não” aos filhos são alguns desses fatores. “Ao invés de tentar entender da onde vêm esses sintomas, temos preferido mais uma agressão que é a medicalização”, diz.
Em conversa com o Carta Educação, o especialista com 20 anos de experiência na área e cujo TEDx “Crianças, já para fora” teve mais de 150 mil visualizações no YouTube falou sobre os principais “pecados” que estamos cometendo contra a infância e os possíveis caminhos para solucioná-los.
Carta Educação: O senhor fala que, hoje, estamos diante de uma terceirização da infância. Como se dá esse processo?
Daniel Becker: A terceirização da infância acontece em todos os níveis e classes sociais, mas é mais acentuada nas classes média e alta. Os pais estão convivendo muito pouco com seus filhos. Há casais que não se preparam para tê-los, não levam em consideração que um filho ocupa muito tempo e energia, que exige dedicação. Logo, quando chega uma criança na família, sua criação acaba terceirizada em uma creche, por uma babá. Os pais acabam vendo seus filhos, muitas vezes, só na hora de dormir, fazem poucas refeições e passeios juntos, enfim, acabam tendo poucos momentos de convivência. Isso tudo é agravado pelas condições que a sociedade atual impõe: longas horas de trabalho, exigindo, inclusive, que as pessoas trabalhem fora do expediente, à distância nos seus tablets e celulares. Nas classes baixas, a situação é, muitas vezes, mais grave porque nem sempre os pais têm acesso à creche e, para trabalhar, precisam deixar seus filhos com vizinhos, cuidadores. Isso quando não precisam deixar as crianças sozinhas em casa. Nesse contexto, elas ficam totalmente confinadas porque os pais não deixam sair justamente pelas condições de violência das comunidades. Logo, ficam na televisão, nos celulares o dia inteiro.
Carta Educação: Como essa falta de convívio entre pais e filhos afeta negativamente as novas gerações?
DB: Terceirizar a educação é ruim para as crianças, é ruim para os pais. Os filhos acabam sendo educados por pessoas que, muitas vezes, compactuam com outros valores. Além disso, a criança não cria memórias afetivas em família por meio das quais se constrói a coisa mais importante para se educar alguém, a intimidade. Só na intimidade consegue-se dar limites, orientar, conversar sobre assuntos profundos quando mais velhos. Sem convivência não há intimidade e as crianças ficam aleijadas de seus pais que são as figuras guias, afetivas, mais importantes para elas.
CE: As crianças estão também cada vez mais conectadas. Sabemos que a tecnologia traz muitos benefícios, mas quais os efeitos perversos de uma infância confinada, na qual precisam ser constantemente distraídas?
DB: Costumo dizer que a tecnologia não é só inevitável, mas desejável. O mundo moderno caminha para que os aparelhos eletrônicos, principalmente, os telefones celulares sejam a base da nossa comunicação, da circulação de ideias. Mas o sobreuso é prejudicial em todos os sentidos, inclusive, para a saúde física e estudos americanos mostram que as crianças ficam, em média, de 8 a 10 horas conectadas por dia. Isso é, obviamente, muito ruim porque a vida não pode acontecer só no smartphone, tem que acontecer do lado de fora também, nas interações olho a olho.
Na verdade, as crianças migram para a tecnologia porque estão confinadas em casa. As escolas têm cada vez menos espaços abertos e livres e mais sala de aula, conteudismo. Com a energia explosiva que as crianças têm, o único jeito de domar alguém confinado é oferecendo distração permanente e, claro, aquela oferecida pelos telefones é irresistível. Só que o excesso de distração que essa tecnologia traz incapacita a criança para o ócio, para o tédio, para estar com a mente vazia, distraída criando suas próprias histórias. E é tão importante usar a imaginação, a criatividade, é assim que se treina o cérebro para ser criativo e imaginativo no futuro – habilidades muitos importantes, inclusive, para o sucesso profissional. O antídoto para isso tudo é sair de casa, ir para a rua, para a natureza e brincar livremente.
CE: Sobre a mercantilização da infância, é possível educar longe da onda consumista que nos acomete? De que maneira?
DB: A mercantilização da infância se dá, principalmente, em dois ambientes. Primeiro, no ambiente das telas. A televisão, por exemplo, veicula o pior tipo de publicidade que é aquela dirigida à infância, uma publicidade covarde, pois vale-se da incapacidade da criança de distinguir entre realidade e fantasia, usa o amor que ela tem por personagens para vender comida tóxica, brinquedos caros e desnecessários. Além disso, vende marcas da moda e modelos muitas vezes adultizados de aparência. Outro ambiente onde se dá a mercantilização da infância é o shopping, que virou o programa de fim de semana da família brasileira. Os pais levam as crianças para ficar vendo vitrines e pessoas comprando e comprando, fazendo disso o grande objetivo da vida delas. São colocadas naquelas gaiolas cheias de brinquedo enquanto os pais fazem compras, depois vão para uma loja de fast food comer comida ruim, comer doce, engordar. Nesse contexto, as crianças vão absorvendo os valores do consumismo, isto é, a hipervalorização da aparência, valores sexistas, de futilidade, do ter melhor do que o ser. Isso tudo é muito ruim para o desenvolvimento de um indivíduo humanista, antenado ao que acontece na sociedade, participativo. Então, é preciso afastar as crianças desses dois lugares, das telas e do shopping.
CE: Muitos especialistas criticam o excesso de atividades extracurriculares nas quais os pais matriculam seus filhos na ânsia de torná-los adultos mais competitivos. Como o senhor enxerga isso?
DB: Hoje, temos uma cultura que chamamos de escolarização do aprendizado. Existe uma ilusão que a criança só aprende a partir do adulto, então ela fica com a agenda cheia de programas ministrados por adultos. Com três anos, sai da natação, vai para o futebol, depois vai para a capoeira para depois ter aula de inglês. É massacrante. Nas escolas, é a mesma coisa, sai de uma aula entra em outra, não tendo tempo livre de pátio. Só que a gente está esquecendo que isso não prepara a criança para o mundo. As habilidades mais importantes para ser uma criança feliz e um adulto preparado para a vida e, portanto, também feliz são adquiridas no livre brincar, na interação livre com outras crianças e com a natureza. Daí nasce a empatia, a inteligência emocional, a capacidade de tomar decisões, de negociações, de enfrentar desafios e medos, avaliar riscos, as habilidades corporais, etc. A arte de brincar quando criança é a arte de saber viver quando adulto.
CE: O senhor também afirma que os pais passaram a colocar seus filhos em um trono. Quão importante é colocar limites e ter uma relação de autoridade com as crianças? Por que a superproteção da infância é nociva?
DB: A superproteção é consequência dessa falta de convivência, de intimidade. Os pais têm medo dos filhos, de dizer não, dos ataques de birra. Mas os pais que superprotegem impedem que a criança experimente a vida e aprenda com as experiências negativas e sabemos muito bem a importância de errar, de aprender com as frustrações, de entender que o mundo não existe para nos servir, de ter que achar nosso lugar no mundo e saber que isso envolve um processo de sofrimento, de não atendimento das nossas expectativas. Privando a criança das frustrações próprias da infância como ralar um joelho, não conseguir fazer um dever de casa, brigar com os amigos, não ganhar um brinquedo induzimos a formação de crianças narcisistas e com muita dificuldade de lidar com qualquer condição negativa. No futuro, serão adultos mais egoístas, com menos empatia e, provavelmente, infelizes. Os pais não devem se interpor entre os filhos e o mundo. É importante dizer aqui que isso é uma análise das condições sociais da infância, não uma análise para culpabilizar as famílias e que muitos desses “pecados” em pequena dose não fazem mal algum. A criança pode comer um docinho de vez em quando, só não pode comer todo dia. Uma criança que vai uma vez por mês no shopping não vai se tornar uma consumista frenética e assim por diante.
CE: O senhor diz que a medicalização da infância é o pior dos pecados que cometemos hoje contra a infância. Por que e como evitá-la?
DB: Todos esses fatores negativos que elenquei acima tornam as crianças sintomáticas. Elas começam a engordar, dormir mal, ficar birrentas, rebeldes, não prestar atenção, não assimilar o conteúdo escolar, ficar melancólicas, estressadas, mimadas. E, ao invés de tentar entender da onde vêm esses sintomas, analisar essas condições sociais da infância, temos preferido mais uma agressão à infância que é a medicalização. Nos Estados Unidos, 15% de todos os alunos do Ensino Médio estão tomando remédios psiquiátricos, isto é, um em cada seis. E como evitar a medicalização? No particular, pensando no que está acontecendo com nosso filho e, como sociedade, no que está acontecendo com a infância. Uma vez que há uma criança sintomática, existem muitas formas de ajudá-la que não envolvem remédios. Pode-se rever o convívio daquela criança com a família, reduzir o stress que ela é submetida, aumentar o tempo dela ao ar livre, buscar terapias, além de exigir políticas públicas que ajudem nesse sentido.
CE: O senhor propõe como solução mudar nossa relação com o tempo e o espaço. De que maneira? É possível falar de ocupação do espaço público com cidades cada vez mais violentas?
DB: Proponho que pelo menos 10% do nosso tempo seja dedicado aos nossos filhos. Passar uma hora, uma hora e meia convivendo por dia. Tomar o café da manhã juntos, contar uma história antes de dormir são momentos que geram intimidade, afeto, capacidade de educar. A segunda dimensão é mudar a relação com o espaço. Temos uma série de evidências mostrando como o contato com a natureza traz benefícios cognitivos, psíquicos, físicos, para o presente e para o futuro. A natureza melhora a imunidade, favorece a atenção, traz mais felicidade, melhora a memória, a capacidade de absorção de coisas que são ensinadas, favorece a empatia, a disposição física, reduz a obesidade e a insônia. Neste contexto, deve-se buscar o livre brincar. A criança deve brincar livremente com outras crianças, criar jogos, subir em árvore, correr, enfim, participar dessa festa que é a infância. As famílias podem favorecer esse contato, mas, é claro, também precisamos exigir de nossos governantes que haja espaço público para ocupar e que ele seja seguro, além de políticas públicas que nos permitam explorar espaços naturais e conviver. É minha esperança para que possamos ter cidades melhores e cidades melhores implicam em pessoas mais felizes.
Fonte: http://bit.ly/2nb6AmK
Excelente artigo. Como avó posso dizer o quanto a vida moderna consome o tempo dos pais e crianças na exigência de cumprimento de tarefas. Já no tempo em que fui mae/educadora a coisa já caminhava para as dificuldades hoje constatadas. Encontramos um ponto de equilíbrio na educação dos nossos pequenos, hoje adultos, pais dos nossos netos, quando acordamos que haveria um provedor é um cuidador nessa relação. Ambos educariam. Isso é cumplicidade numa família. Acredito que os erros foram melhor administrados.